quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Paralelos

Acordou com a música que vinha do rádio relógio ao lado da cama. Quem ainda usa rádio relógio hoje em dia? Era a pergunta que sempre fazia quando ele despertava de manhã e ela não queria acordar, mas não podia dormir mais cinco minutinhos porque não sabia direito como usar a função snooze do bendito rádio relógio. Sabia consertar eletrodomésticos da mãe e orgulhava-se de trocar as próprias lâmpadas queimadas, mas não sabia usar um botão de um rádio relógio tão velho.
Levantou sem abrir direito os olhos, sentou na cama esticando o braço para alcançar o botão, mas interrompeu o movimento quando percebeu qual era a música que estava tocando.
Lembrou-se que era domingo e não entendeu o que o despertador estava fazendo tocando uma hora daquelas, em pleno domingo. Domingo era sagrado. O dia do sagrado sono até meio dia. Acordar com fome e almoçar o resto da janta. Uma fatia de pizza gelada, um resto de yakissoba frio, um pedaço de lanche trazido da rua na noite anterior. A regra era não se esforçar, não sair de casa, não atender ninguém e não fazer nada antes da uma da tarde. Funcionava assim há anos, não fazia o menor sentido aquele despertador tocando agora. Pelo menos a música era boa. Apesar de fazê-la lembrar de um passado há tanto esquecido e enterrado, pelo menos a música era boa.
- 7:00am. Que loucura foi essa de programar esse despertador pra uma hora dessas? Só terminar essa música e volto a dormir. Deve estar com defeito. Vou terminar de ouvir e desligar da tomada. - disse baixo, enquanto voltava a se deitar, jogando os braços por baixo do travesseiro e esticando as pernas para ocupar a cama toda.
- Você vai voltar a dormir? Não prometeu que hoje começava a caminhar?
Por um segundo que pareceu um minuto encarou aquele vulto na sua cama, falando com ela de forma tão natural, como se tivesse sempre estado ali. A voz era conhecida, mas não fazia o menor sentido. "Como ele entrou aqui?" pensou enquanto tentava se lembrar de qualquer objeto pesado o bastante ou pontiagudo que pudesse usar para se defender dele. Mas ele não parecia uma ameaça. Ele nunca tinha sido uma ameaça. Apesar de não terem dado certo juntos e de na última vez terem brigado tão alto que as luzes da casa do outro lado da rua se acenderam no meio da madrugada, ele nunca foi uma ameaça. Ela era uma ameaça pra ele. Já havia arremessado coisas na direção dele em mais de uma ocasião. Ciúmes, desentendimentos por culpa de amigos, mau humor. Acontecia pouco, mas acontecia. E ele sempre, com a maior calma do mundo, desviava dos objetos voadores e ia embora. Voltava ou ligava horas depois para conversar e ela sempre pedia desculpas, jogava a culpa nele, mas pedia desculpas. Não queria machucar, não queria acertar, não queria que ele fosse embora. Até que um dia ele desviou de um mini-dicionário, foi embora e não voltou mais. Não ligou. Não apareceu mais nem para buscar as coisas dele ou devolver as coisas dela.
Ela esperou por 2 dias. Pensou em ligar, mas não ligou. Pensou em mandar um e-mail, mas não mandou. Pensou em ir pessoalmente até o trabalho dele no meio do dia, na quarta-feira seguinte, mas achou que seria inconveniente demais interromper o expediente dele para brigar por ele ter sumido tantos dias. E no trabalho dele ela não poderia gritar ou bater portas. "Se ele foi embora, ele que volte. Ele sempre volta.". Mas ele não voltou.
Durante algum tempo ela ainda pensou que fosse chegar em casa e encontrar com ele na porta, esperando por ela, com uma desculpa qualquer para justificar o sumiço. Mas já havia se passado 3 meses e ninguém nem tinha notícias dele. Só sabiam que ele continuava trabalhando no mesmo lugar, morando na mesma casa. Mas havia sumido dos bares que frequentava e não dava as caras há muito tempo nas casas de amigos em comum.
Ela nunca perguntava diretamente dele, mas vez ou outra conduzia as conversas de forma que alguém tocasse no nome dele, esperando alguma notícia. Mas as pessoas normalmente perguntavam dele pra ela ao invés de dar o paradeiro do fugitivo.
Chegou um dia, quase 1 ano depois, que ela desistiu de esperar. Pensou que ele talvez tivesse arrumado outra, tivesse ido embora do país, tivesse conhecido outro cara e se descoberto gay. Qualquer desculpa fazia sentido para explicar o sumiço.
Ela evitava apenas pensar que ele estava cansado das brigas, do descontrole, da instabilidade emocional que ela vivia e descarregava nele. Evitava pensar que a culpa era dela. Não era. Ele devia um pedido de desculpas. Mas depois de tanto tempo, deixou pra lá. "Que esteja feliz, pelo menos", ela pensava. Mesmo que no fundo ela sempre completasse com um "...e sozinho".
Depois de tantos anos juntos, não conseguia aceitar a idéia de que ele pudesse se interessar por outra, que ele pudesse estar com outra, beijar e ir pra cama com outra. Ela não se via com outro também. Pensava que não conseguiria mais ficar nua na frente de outro cara que não fosse ele. Sentia pavor de pensar em acordar no meio da noite, ainda sem se vestir e deparar-se com alguém na cama que não fosse ele. Não teria coragem de perguntar, rindo como sempre fazia, onde estava a calcinha dela. E sabia que nunca mais ouviria a resposta "pra quê vestir se vamos tirar de novo daqui a pouco? Volta pra cama..." com aquela voz sonolenta e sexy que ele tinha quando acabava de acordar.
Aquela voz... Aquela voz estava ali, no escuro do quarto dela, falando com ela, na cama dela. Aquela voz. "Como ele entrou aqui?" e ainda não entendia o que estava acontecendo.
- Que dia é hoje?
- Hoje é... Do mês eu acho que é 14. Domingo. Por quê? Deixa eu ver no celular. Pega no bolso da minha calça aí no chão.
Ela sempre perguntava o dia quando, nas manhãs de ressaca, queria se livrar de alguma companhia indesejada que acabava passando a noite ao invés de seguir no primeiro táxi às 4 da manhã. Depois de tanto esperar, ela voltou a sair, conheceu outros caras legais, levou alguns para a casa dela, fez o que quis fazer e sempre, inevitavelmente os despachava com uma desculpa qualquer para que eles não dormissem lá ou ficassem mais que o necessário. Não queria aquele incômodo de preparar café da manhã ou o constrangimento de acordar com um café na cama e um pedido de namoro às 8 da manhã. É difícil dizer não antes do meio dia e ela não gostava de parecer grosseira com desconhecidos. Quando acontecia de pesar demais o sono, um tipo de despertador interno a fazia acordar antes deles e ela se vestia correndo, fazendo algum barulho no quarto. Derrubava um desodorante ou chutava um banquinho de forma que qualquer narcoléptico acordasse no susto e emendava na pergunta chave, "que dia é hoje?" para em seguida fingir um compromisso qualquer, alguém chegando de viagem no aeroporto ou na rodoviária e ela precisava se aprontar pra buscar a pessoa, "infelizmente você não vai poder ficar, mas me liga, vamos sair de novo um dia desses...". E nunca mais.
Mas perguntar o dia para ele não foi uma maneira de começar o teatro para livrar-se dele. Foi um medo de aquilo ser um sonho, medo dele de repente responder 31 de fevereiro, se transformar em uma gaivota azul e sair voando pela janela aberta.
- O que você está fazendo aqui?
- Quê?
- Como você chegou aqui? O que você está fazendo aqui?
- Eu? Estou acordando, ué. Eu costumo fazer isso depois que durmo por algumas horas. Você tá bem? Tá dormindo ainda, né? Vem cá, deita aqui...
- Como você entrou aqui? Desde quando está aqui?
- Entrei com você, ontem, depois que fomos ao mercado e estou aqui desde a semana passada, quando estourou aquele cano no meu banheiro e você disse que eu poderia ficar aqui com você. Deita aqui, volta a dormir.
- Cano? Que cano?
Ele riu e enquanto a abraçava, pediu mais uma vez que ela se deitasse para voltar a dormir.
Ela deitou, mas não fazia o menor sentido. Ficou pensando o que ela teria bebido ou usado sem perceber na noite anterior. Só podia estar sonhando, só podia ser uma ressaca depois de 1 semana alucinada. "Como assim? Ele está na minha casa há dias e eu nem me lembro?". Se estava ficando louca, precisava ao menos fingir estar sã para evitar uma internação. Se estava sonhando, precisava se manter no controle daquele sonho. Entrou no jogo dele. Deitou na cama, deu um beijo nele meio desajeitado e percebeu que, com tanto tempo de saudade e distância, já tinha se esquecido como era o arrepio que sentia quando os lábios deles se encontravam.
- Me desculpa?
- Hmm... Por quê?
- Por tudo. Me desculpa?
- Não sei o que é esse tudo, mas se você está arrependida, desculpo, sim. Eu sempre te desculpo.
A música terminou e, antes de puxar a tomada do rádio-relógio, ela só teve tempo de cantar sorrindo o finalzinho "em algum lugar do tempo, nós ainda estamos juntos Pra sempre, pra sempre ficaremos juntos". Se fosse um sonho, que pelo menos terminasse bem. Se fosse uma nova chance, que pelo menos recomeçasse com uma promessa.


***
A idéia desse conto surgiu enquanto eu ouvia essa música. Não consegui escrever de uma vez só porque as idéias sempre me procuram quando preciso ir dormir, então fiz quase todo no sábado de madrugada e deixei pra terminar na terça-feira, quando tenho 2h livre (por incrível que pareça, no trabalho).
Se ficou muito ruim, perdoem-me. Foi minha primeira vez arriscando um texto totalmente de ficção. Mas saiu tão fácil e tão natural, que achei melhor não esconder. =)


***
Trilha Sonora: Em Algum Lugar do Tempo - Biquini Cavadão. Essa música sempre mexeu demais comigo, mas depois desse conto ela ganhou um status diferente na minha playlist "músicas de dor de amor".

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